HERKENHOFF, Paulo. Saunas, 2005. In: Adriana Varejão. Chambre d’échos/Câmara de Ecos. Fondation Cartier pour l’art contemporain/Actes Sud, 2005.

isto pertence à história do nada

Depois do fim da história, do esgotamento da modernidade, da falência das ideologias e da impossibilidade da história da arte contemporânea91, as Saunas padecem de afasia e enfrentam a morte dos significados. A arquitetura vazia vive uma não-existência funcional. O olhar habita o estado zero do espaço. O lugar é mudo. A azulejaria é calada. A sala espera.

Na quietude, indaga-se se o barroco saturou seu sentido para a pintura de Varejão. Seu corpus pós-colonial pictórico é a fricção dialética entre dois mundos que formaram um campo distópico barroco no confronto entre o Paraíso perdido e o Paraíso desencontrado2. Nesta História do Nada3, as Saunas de Adriana Varejão alinham-se com o silêncio de 4’33” de John Cage, que poderia ser a música desses cômodos. O que se encontra nas Saunas desertas são ressonâncias conceituais do oco na interioridade de certos Bichos de Lygia Clark, o vácuo verbal de Mira Schendel no limite metafísico do indizível ou os Buracos sub censura de A. M. Maiolino. A pintura política de Varejão poderia ser aproximada do vácuo político do gueto e sua metáfora como buraco negro para Cildo Meireles. Diz-se que, em sua orgia, o barroco precipitou o fim dos significados. A harmonização de elementos sacros e profanos no barroco terminou por “anular as diferenças dos significados”, anota Janice Theodoro(4). No oposto, Eric Hobsbawm entende que o excesso de explicações de “significados” parciais atentariam contra uma necessária história universal5. Esse é o deliberado sentido da arquitetura vazia montada por azulejos monocromáticos: inquietar e instalar dúvida sobre o caráter significante do espaço.

Os quartos azulejados instalam uma tênue diferença entre contaminação e assepsia. Podem ser lugares de prazer, pensar, expiar ou morrer — e agora indagar. A azulejaria de Varejão já foi tudo: (1) cozinha; (2) banheiro; (3) um botequim carioca; (4) piscina pública em Saint-Germain; (5) malha cubista da pintura moderna; (6) hotel para encontros fortuitos; (7) hospital; (8) laboratório; (9) sala de cirurgia; (10) super-mercado; (11) açougue; (12) matadouro; (13) necrotério; (14) sala de dissecação; (15) sala de decorticação; (16) sala de tatuagem; (17) igreja e (18) e mesmo uma sauna6. Pervertidas num “labirinto do contínuo” de uma cena anamnésica, agora parece que as Saunas só poderiam caber na paradoxal História do Nada.

isto pertencia à história do nada

“You ain’t seen nothing yet”. Esta é a frase inicial dita por Al Jolson em The Jazz Singer, o primeiro filme falado. Poderia ser também o segredo guardado por O Sedutor (2004) de Adriana Varejão, sua grande Sauna com proporções de uma tela de cinema: 230 x 530 cm. Al Jolson quebrava em 1927 o silêncio de outro sedutor, o cinema. A cinéfila Varejão percorre espaços virtuais em 3D com uma câmera na mão. A pintura surge como travelling e enquadramento.

O uso público da história parece ser acirrado pelo intimismo exposto nestas saunas caladas, sendo elas um ambiente extremamente cerrado, sem exterioridade. A realidade não tem acesso a este espaço fechado. No extremo, Varejão projeta jogos de binômios tensos em inexata simetria: figura e geometria, mínimo e acúmulo, transparência e espessura, razão e sensualidade plástica, sangue e assepsia. A morte dos significados se resolve a partir do efeito borrado dessas equivalências. A hipótese de contágio ronda a cena.

O chão azulejado da Sauna, escorregadio e cheio de dobras e redobras arquitetônicas — degraus, canaletas, vigas, colunas e bancadas — demanda cautela no deslocamento. Os sentidos alertam contra os acidentes no estado zero da arquitetura. Mobilizam a propriocepção7. Com este “sexto sentido”, é apenas com a visão que o sujeito desencarnado posiciona seu corpo no espaço. As Saunas solicitam a ação do “olho interno”. Poderiam ser a monada leibniziana que conformasse o ser e suas dobras8. No entanto, o sangue espalhado em The Guest é o retorno dos corpos. Sua carga simbólica insiste em intrometer-se no olhar. O sangue se expande como curso do informe sobre a grid ortogonal, capilaridade entre junções da azulejaria. “É como se todo o espaço pudesse ser estas dobras. Pode ser uma cisão entre geometria e arquitetura”, diz Varejão.

Os títulos das Saunas indicam intenso labor psicológico sado-freudiano sob a construção cromática em semitons da cor regente: o amarelo em O Obsceno, o rosa em A Diva, o azul em O Sedutor, o cinza no corredor de O Obsessivo, o vermelho e branco em The Guest. Entre escatologia, êxtase e sublimação, Sade e Freud, as Saunas pertencem à ordem dos sintomas, sonhos e atos falhos, localizadas entre formas de retorno do recalcado (Verdrängung) e emergência do libertino. Depois do furor ocasionado pelo anúncio do fim da história9, o reprimido não são apenas os processos concretos da história dos vencidos ou das artes menores (como a tênue da história do corpo colonial e a história da azulejaria na pintura Tales of Tiles). O que insiste em voltar ao nível da consciência ou do exercício da libido, depois do desrecalcamento da voz dos azulejos, é a própria História e o corpo. Varejão compreende que a função da prática artística, como diz Guattari, não é contar histórias (nem reprimi-la, acrescentaríamos), mas criar mecanismos pelos quais a história pode ser dita. Varejão agencia a história. O silêncio das saunas não tem débito com o passado, apenas seqüestra o olhar como condição do presente em processo. Nessa economia do recalcamento dos significados, as Saunas são um “reinvestimento” pulsional. Como Gianni Vattimo, essas pinturas insistem na impossibilidade de esquecer. Com Jürgen Habermas desafiam silenciosas: “a história não pode parar”10. A partir do Nada ahistórico, é impossível esquecer e recalcar indefinidamente.

isto pertence à história de algo

Pintura é trabalho de alvanel. Esteve aberta e a carne se esparramou da superfície aberta da alvenaria pictórica a la Fontana. A tela supurou e expôs suas vísceras. A pintura aportara seu corpo (Paul Valéry) e a pintora emprestara seu corpo ao mundo. Quis mudar “o mundo em pintura”11. Agora, telas suturadas em âmbito vazio, as Saunas aparentam pouco exigir do olhar a não ser o observar da própria pintura. A junção dos azulejos, elaborados monocromos individuais, é cisão e cesura.

As Saunas, espaços sem exterior, retomam a discussão da pintura ao plein air. Agora o ar livre só pode ser luz virtual. Suas referências fundem conceitos e escritura fotográfica. Numa ponta, está o verbete “matadouro”, sagrado e amaldiçoado, da Encyclopaedia Acephalica, de Georges Battaille, Michel Leiris et allii. Na outra, estão as imagens de abundante pulsão vermelha dos matadouros de Miguel do Rio Branco. Com Sade, Freud e Bataille, Varejão elabora uma fantasmática da geometria. Algo incômodo acede à superfície.

O espaço “autocádico” das Saunas é feito de dimensões planares deformadas pela perspectiva — os quadrados viram losangos, faixas, quase linhas. Cada quadrado-azulejo é um monocromo. São todos da mesma cor, que, sob luz, se desdobra, no quadro, numa sinfonia de semitons. Dissentindo da frontalidade dos azulejos, como na foto de Mapplethorpe de 1979, de James Ford no banheiro, as Saunas remetem, em relação mais direta, ao quadro Chambre à Carreaux (Quarto de Azulejos, 1935) de Vieira da Silva. A pintora portuguesa constrói o território em malha de azulejaria pictórica. Varejão também. Vieira da Silva não distorce a malha como fenômeno apenas ótico, mas opera o esforço por obter a improvável elasticidade do espaço, depois da relatividade anunciada por Einstein. Em sua impossibilidade de ser artista concretista, a proposição faz dela a mais avançada experiência espacial no Brasil na década de 40, uma espécie de proto-Neoconcretismo antes de Max Bill. Na produção de Adriana Varejão, a cisão entre azulejos levou aos Charques, que destituiu o discurso de significado, paródia e metáfora para passar para geometria.

A pausa das Saunas se distancia das extensões metafísicas de Giorgio de Chirico. Fundamental para Varejão é o espaço real de junção entre os azulejos. Talvez correspondesse na pintura de Clark à linha orgânica entre planos reais (em madeira) com que se modula a superfície. É, no entanto, alvenaria. Está mais próximo, nas Naturezas Mortas de Morandi, daquele espaço estruturante entre o ar e as coisas. Cada Sauna é o lugar onde o olhar encontra a história dos procedimentos de elaboração do quadro.

A paradoxal proposta das Saunas é o confronto entre a descontinuidade da História do Nada e o vazio significante. Sendo agora História de Algo, só pode ser daquilo que está por ser descoberto pelo olhar. “You ain’t seen nothing yet”.

notas

1 Diante da amplitude, proliferação e multiplicidade da produção, Donald Kuspitt proclamou a impossibilidade da história da arte contemporânea, uma tarefa cruciante. In “The Contemporary and the Historical: More At Odds Than Ever”, palestra proferida no IV SITAC, Cidade do México, janeiro de 2005.

2 Neste sentido, sua história difere do positivismo da pintura de Pedro Américo, Almeida Junior e mesmo de Tarsila do Amaral dos períodos Pau-brasil (A Religião Brasileira, 192 ) e social (Operários, 193).

3 Convém referir a The Nothing that is, a Natural History of Zero (1999) de Robert Kaplan, Nothingness, the Science of Empty Spaces (2001) de Henning Genz e The Book of Nothing (2002) de John Barrow.

4 América Barroca. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1992, p. 149.

5 “Em defesa da História” in O Estado de S. Paulo, 23 de janeiro de 2004, Caderno 2 , p. 1.

6 Correspondendo respectivamente às seguintes pinturas de Varejão: (1) Azulejaria de Cozinha com Caças Variadas, 1995; (2) A Diva, 2004; (3) Linda da Lapa, 2004; (4) Swimming pool, 2005; (5) Azulejões, 2000; (6) Linda do Rosário, 2004; (7) Extirpação do mal por Incisura, 1994; (8) Azulejaria Azul em Carne Viva, 1999; (9) Parede com Incisões à la Fontana, 2000; (10) Ruína de Charque Chacahua, 2000; (11) Varejão Acadêmico — Heróis, 1997; (12) The Guest, 2004; (13) Extirpação do Mal por Overdose, 1994; (14) Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo), 1998; (15) Irezumis Gêmeos, 1999; (16) América, 1996; (17) Proposta para uma Catequese, 1993 e (18) Green Sauna, 2003.

7 Jean-Didier Bagot. L’ABCdaire des Cinq Sens. Paris, Flammarion, 1998 , p. 95.

8 Gilles Deleuze. El Pliegue, Leibniz y el Barroco. Barcelona, de Edicones Paidós, 1989, Trad. de J. Vasquez e U. Larraceleta, p.14.

9 “The End of History?” in The National Interest, Summer issue, 1989. Robert Storr discute uma “arte da história depois do Fim da História”, lembrando que o predomínio formalista havia desautorizado o ilusionismo, a figuração e a “literatura” na arte. Storr ilustrou sua palestra no SITAC, México, 2005, com referência à narrativa ou representação pictórica na obra de Immedorf, Kieffer, Richter, Varejão e Walker.

10 The New Conservantism, Cultural Criticism and the Historians Debate. Cambridge, MIT Press, tradução de Shierry Nicholsen, 1989, “history does not stand still”. p. 232

11 Maurice Merleau-Ponty. L’Oeil et l’esprit (1961). Paris, Gallimard, 1965, p. 16.